Um projeto de lei para obrigar os estados a atualizar os regimentos disciplinares da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros já tramita no Congresso Nacional. O autor da proposta, deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) diz que a medida pode frear punições exageradas e melhorar o trabalho das corporações. A matéria já foi aprovada na Câmara e está pronta para ser votada pelo plenário do Senado.
Segundo a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a legislação atual equipara a atuação da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros à das Forças Armadas e acaba por punir militares de forma desproporcional em alguns casos, como de indisciplina. Especialistas em segurança pública argumentam que a atualização de marcos legais das corporações pode melhorar as condições de trabalho e atende a demandas dos agentes e da sociedade.
De acordo com a legislação, transgressões aos regimentos disciplinares podem determinar a abertura de processo por infrações ao Código Penal Militar, na Justiça Militar. O documento de 1969, que rege as relações no ambiente militar, teve origem no Ato Institucional número 5 – um dos mais duros instrumentos da ditadura militar. Os regimentos das corporações também são, em sua maioria, anteriores à Constituição de 1988 e permitem que faltas como desacato ou desobediência sejam punidas com o mesmo rigor que um homicídio culposo.
Prazo para revisão
Para atualizar os regimentos das PMs e dos Bombeiros, o projeto de lei, que tramita no Congresso, fixa prazo de 12 meses para os estados – por meio das assembleias legislativas – instituírem novos códigos de ética e disciplina para as corporações. O deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) diz que é preciso assegurar aos agentes garantias do processo legal, como o direito ao contraditório e à ampla defesa, além de acabar com a prisão disciplinar.
“Tem que atualizar tudo, inclusive a tipificação das condutas. Tem estado em que dormir em serviço dá cadeia, em outro, o regimento prevê o absurdo de a pessoa pedir [autorização à corporação] para se casar”, critica. Segundo Gonzaga, as leis atuais, especialmente as que tratam de punições disciplinares, são desproporcionais e “institucionalizam o assédio moral”.
Apesar de o projeto de lei não alterar o Código Penal Militar, apenas os regimentos, a proposta torna mais difícil a condenação de agentes militares por casos de baixo potencial ofensivo, e, na prática, pode diminuir o número de processos por indisciplina que chegam à Justiça Penal Militar, segundo Gonzaga.
“O projeto prevê que penas de prisão sejam aplicadas apenas às condutas tipificadas como crime e julgadas pela Justiça Militar. E que as condutas tipificadas como falta disciplinar sejam punidas, mas não com prisão, como acontece para quem chega atrasado, com cabelo grande, farda mal passada. A prisão deve ser reservada ao crime, de fato”, destaca.
Em Minas Gerais, onde os regimentos foram atualizados, a pena de prisão administrativa acabou em 2002. “A Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais não deixaram de ser referência de instituições disciplinadas, que trabalham, e a segurança pública não piorou”, compara o parlamentar. No estado, a pena mais alta para infrações de indisciplina passou a ser a suspensão com perda de salário.
Militares apoiam reforma dos regimentos
A atualização dos regimentos disciplinares encontra respaldo nas corporações, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que ouviu 21 mil policiais. Mais de 83% querem a reforma dos documentos à luz da Constituição e uma parcela ainda maior discorda da aplicação de leis criadas para as Forças Armadas para o trabalho de policiais e bombeiros, a chamada desmilitarização.
Ex-chefe do Estado-Maior da PM fluminense, o coronel Robson Rodrigues da Silva, atualmente na reserva, diz que as leis militares – em especial os regimentos – são anacrônicos e ineficazes para reger a atuação de um policial hoje em dia.
“Esse regimento é quase um espelho do regulamento do Exército, mas chegou a hora de as polícias militares serem repensadas. Essa ambiguidade, que deixa um pé em uma instituição militar e outro em uma instituição civil, acaba trazendo problemas na hora de resguardar direitos e não atende aos anseios da sociedade por uma polícia de proximidade”, analisa o militar reformado e doutorando em segurança pública na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Para o sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj e um dos mais importantes pesquisadores do tema no país, a atualização trará dignidade aos agentes. “Desmilitarizar a polícia não é tirar a arma dos policiais. É atuar para que policiais tenham direitos como qualquer cidadão, de se organizar, de revindicar direitos, de não serem tratados de forma arbitrária e autoritária e atender melhor a população”, defendeu em entrevista recente ao Canal Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Procurada para falar as regras disciplinares da corporação, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informou que aplica o Código Penal Militar e o Regulamento Disciplinar. Já o Corpo de Bombeiros preferiu não comentar os casos e destacou que não cabe à instituição legislar sobre as normas.
Defensoria do RJ critica penas severas a bombeiros e policiais por indisciplina
Das cerca de cem acusações contra policiais militares e bombeiros que chegam à Auditoria Militar do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por mês, a maioria é de casos de desacato à autoridade ou descumprimento de ordens de superiores, as chamadas recusas de obediências, segundo levantamento inédito da Defensoria Pública do estado. Pela legislação militar em vigor, uma ocorrência de farda mal ajeitada ou uma discussão por atraso acabam sendo julgadas com o mesmo rigor de um homicídio doloso, com penas que podem chegar a um ano de prisão.
Criadas para julgar militares que cometeram infrações ao Código Penal Militar, as auditorias militares são compostas por um juiz de direito, responsável por boa parte das análises dos casos, e por mais três oficiais militares, que podem ser chamados a compor um colegiado.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro alerta que casos banais recebem punições severas e desproporcionais, com consequências na vida civil dos agentes, por causa da estrutura rígida de hierarquia e disciplina militares e da legislação desatualizada.
“Desacatos e recusas de desobediência são crimes que poderiam ficar na esfera administrativa, mas que, por força dos princípios da hierarquia e da disciplina militar, são levados à Justiça, o que é um equívoco e um descompasso com a evolução do direito penal”, critica o defensor público Thiago Belotti, que representa réus na auditoria militar. Segundo ele, o argumento da hierarquia e da disciplina é arbitrário e não permite a aplicação de outros princípios jurídicos, como o de menor potencial ofensivo.
“Nessas transgressões de uniforme, de uma fala um pouco mais ríspida do soldado em relação ao superior, é muito difícil conseguir uma absolvição, você pode dar uma cambalhota no plenário, eles sempre fundamentam no jargão da hierarquia e disciplina e condenam”, relata o defensor.
Penas muito severas
Belloti atuou recentemente em dois casos em que militares foram condenados por indisciplina. Em um deles, um PM foi punido por discutir com um oficial que o repreendeu por deixar a camisa por fora da calça da farda. Na outra ocorrência, um policial se desentendeu com o superior após chegar atrasado.
Nos dois casos, segundo as leis militares, a pena mínima é equivalente à de homicídio culposo, de um ano de prisão, que pode ser revertida em medidas alternativas, como serviço comunitário. O condenado, no entanto, deixa de ser réu primário e de ter bons antecedentes criminais, comprometendo inclusive a carreira na corporação.
“Ou seja, se um militar em serviço, fazendo manutenção de um armamento sem a cautela devida, dispara um fuzil e mata um companheiro de farda, um homicídio culposo, ele vai ter a mesma pena que outro que discutiu com o capitão”, compara Belotti.
Em dezembro, outro caso de prisão de um militar mostrou a desproporcionalidade do Código Militar no julgamento de indisciplina como crime, segundo o defensor público: o subtenente do Corpo de Bombeiros Mesac Eflain ficou detido no quartel após denunciar à imprensa condições precárias nos refeitórios da corporação. A instituição argumentou que o militar causou uma “percepção de insegurança em toda a população”, considerada “um ato grave”.
Eflain foi solto cerca de dez dias depois, por meio de um mandado de segurança apresentado pela defensoria à Vara de Fazenda Pública, que referendou o direito à liberdade de expressão do bombeiro. Na Justiça Militar, todos os recursos foram negados. “A prisão de Mesac foi um claro caso de perseguição e de retaliação ao direito de expressão, prova que as leis militares precisam ser recepcionadas pela Constituição.” Tanto os regimentos disciplinares no Rio do Janeiro quanto o Código Penal Militar são anteriores à Carta de 1988.
Juíza defende regimento militar
Juíza da auditoria militar há oito anos, Ana Paula Pena Barros – que é civil – reconhece que a legislação militar está desatualizada e diz que há um esforço para o arquivamento de casos como os de abandono de posto, em trabalho conjunto com o Ministério Público do Estado, responsável por apresentar as denúncias à Justiça. No entanto, a magistrada diz que episódios de “indisciplina” precisam ser analisados caso a caso.
“Não deveria chegar à Justiça o que poderia ser resolvido na hora, por exemplo, uma discussão de um militar com o outro. Agora, é diferente de um militar discutir com outro na frente de militares que são subordinados, porque um superior tem que manter a disciplina”, compara.
Para a juíza, quando uma pessoa opta pela carreira militar, “não pode mais ser vista igual a um civil”.
“Uma coisa que para um civil, um leigo, é simples, para eles, é um desrespeito. E o que segura a Polícia Militar é a disciplina”, disse.
Punição subjetiva
Ex-chefe do Estado-Maior da PM fluminense, o coronel Robson Rodrigues da Silva, atualmente na reserva, defende a reforma do marco regulatório das corporações militares e da tipificação das transgressões por indisciplina. Segundo ele, os processos tomam muito tempo das instituições e as decisões estão sujeitas a avaliações subjetivas, e não técnicas.
“Muitas vezes, o policial fica ao sabor de desejos, às vezes até sádicos, dos superiores”, critica. “Punir por punir, por orgulho de superior em relação ao subordinado, só para autoafirmação, para confirmação da hierarquia, é anacrônico e equivocado. Sou a favor de reformar todo o marco regulatório da polícia”, destacou o coronel, que após 31 anos na PM se dedica à pesquisa sobre segurança pública em um doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O bombeiro Mesac Eflain, que lidera manifestações em defesa de servidores e pensionistas do Rio de Janeiro, diz que a atualização dos regimentos militares à luz da Constituição é urgente e tende a se refletir no atendimento à população. “Essa legislação precisa ser humanizada, no sentido de trazer cidadania ao militar, de maneira que se reflita no nosso trabalho.”
Procurada pela reportagem para se manifestar sobre as regras disciplinares da corporação, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informou que aplica o Código Penal Militar e o Regulamento Disciplinar. Já o Corpo de Bombeiros preferiu não comentar os casos e destacou que não cabe à instituição legislar sobre as normas.