O comando do Exército autorizou policiais civis e militares do país inteiro a comprarem pistola calibre 9 mm, usada pelas Forças Armadas e considerada uma das armas curtas mais letais do mundo.
A liberação para uso particular atende, segundo o Exército, à solicitação de entidades ligadas às polícias.
A decisão ocorre em meio a uma grave crise de segurança na qual agentes têm sido assassinados por criminosos em momentos de folga. No Rio, mais de cem PMs já foram mortos neste ano.
Essa autorização é vista com preocupação por órgãos de fiscalização como a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo –que teme a elevação da letalidade policial.
Já para o tenente-coronel da reserva da PM paulista Márcio Tadeu Anhaia Lemos, 51, a liberação da 9 mm para uso particular era um pleito antigo dos agentes especialmente para tentar fazer frente ao poderio bélico dos criminosos.
As polícias militares, a Rodoviária Federal e a PF já eram autorizadas a comprar 9 mm para suas tropas, mas não para fins particulares –o que mudou com a nova norma.
Para uso pessoal, policiais já podiam comprar pistolas como 380,.40 e até.45, mas nenhuma delas tida por especialistas como tão letal (transfixante) quanto a 9 mm. Os bombeiros militares também estão autorizados pela lista do Exército, mas os guardas municipais de todo o país seguem excluídos dessa permissão.
FOLGA
Lemos diz que a liberação pelo Exército brasileiro, publicada em agosto, agrada aos policiais que se aposentam e precisam entregar o armamento e, ainda, aos agentes da ativa sem autorização para levar a arma para casa.
Agora, todos esses poderão comprar uma pistola 9 mm. Essa arma custa praticamente o mesmo que uma.40 –cerca de R$ 3.700– ou o equivalente ao salário de um terceiro sargento (R$ 3.814,56) no Estado de São Paulo.
A maioria dos assassinatos de policiais ocorre fora de serviço, segundo estudo recente do Instituto Sou da Paz. O levantamento, baseado em boletins de ocorrência, revela que 70% dos policiais mortos na cidade de São Paulo entre 2013 e 2014 estavam de folga.
Outros policiais afetados diretamente pela medida são aqueles que fazem atividades de segurança fora do serviço, os chamados “bicos”.
Com essa arma em mãos, o policial poderá, em tese, matar o oponente com um único disparo em área vital.
“Quando vai realizar um disparo, a ideia é que uma só vez seja o suficiente. Com uma 380, com um 38 ou um 32, pode ser que o cara tome o tiro e ainda continue avançando para cima de você. A probabilidade de ele parar no primeiro disparo com uma pistola 9 mm é quase de 100%”, afirma o tenente-coronel da reserva da PM.
O oficial, especialista em armamentos, diz que o fato de essa pistola ser mais perfurante em comparação com uma de calibre.40, por exemplo, não significa que a população será colocada em uma situação ampliada de risco.
“Se for usar indevidamente uma arma, pouco importa o calibre. O importante é a habilidade de quem a manuseia”, defende Lemos.
PODEROSO
Para o ouvidor da Polícia de São Paulo, Júlio César Fernandes Neves, essa liberação é equivocada e pode provocar mais mortes de pessoas pelos policiais. “Onde se deveria dificultar, estão, na verdade, facilitando. Isso é um estímulo para o aumento da letalidade policial. Porque um policial com uma arma dessas vai se sentir mais poderoso e com mais facilidade para tirar a vida de alguém”, afirma.
O ouvidor disse concordar com o uso de armas por policiais nos horários de folga, mas não com o calibre tão potente. “Não precisavam liberar uma arma capaz de matar duas, três pessoas de uma vez só.” Para ele, uma alternativa poderia ser inclusive a difusão de armas não letais.
Já o especialista em armas Lincoln Tendler, responsável pela revista “Magnum”, diz ver como benéfica a liberação do armamento aos policiais porque a 9 mm é uma pistola de mais fácil manuseio.
“Interfere também na segurança da população porque, quando ele está à paisana, indo para casa, dormir, após o serviço, ele tem como proteger a ele e a terceiros.”
Em São Paulo, a arma padrão da PM é a pistola.40, desenvolvida há mais de 20 anos para atender à polícia federal americana, o FBI, e adotada por boa parte das forças policiais de países das Américas.
A polícia dos EUA, no entanto, está abandonando o calibre.40 após registrar caso em que não conseguiu parar imediatamente um atirador mesmo após atingi-lo cinco vezes no peito e uma no abdômen –usou depois um fuzil para matar o agressor.
Após realização de testes, decidiu retomar o uso da 9 mm pela maior eficiência desse calibre na transfixação do alvo. Está adotando, agora, uma munição especial para aumentar poder de impacto (sem perder a perfuração).
A Polícia Federal brasileira também utiliza a 9 mm.
SUPERIORES
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública do governo de São Paulo informou que a compra de armas por policiais paulistas é mediada “diretamente pela Polícia Federal” e “a utilização de armas pessoais em serviço, tanto por policiais civis quanto militares e técnico científicos, pode ser feita mediante autorização dos superiores”.
“Atualmente, as portarias internas dos comandos das polícias não preveem a utilização de armas 9 mm, por ser uma decisão recente do Exército”, afirma a nota.
Pela portaria publicada pelo Exército, os policiais só podem comprar as pistolas da indústria nacional –que se resume a Taurus e Imbel.
“A portaria nº 967 autoriza a aquisição de armas de fogo, de uso restrito, na indústria nacional, uma vez que a mesma já fabrica diversas armas no calibre 9 mm, não possibilitando a importação”, diz resposta do Exército à Folha.