O principal equipamento do brigadiano é o coração, que está exposto e sangra

Saiu um abrangente Censo da Brigada Militar, realizado em outubro de 2023, com 18,2 mil entrevistados.

O retrato do ânimo das tropas não é nada tranquilizador. Pelo contrário, os brigadianos estão, em ampla maioria, descontentes com o salário: 73,35%. Já o descrédito quanto ao plano de carreira alcançou 85,23%. No mesmo escopo, 61,82% criticam o pouco apreço na BM.

Um policial militar demora um ano para se formar, e bem menos para não se sentir amado
Mas o dado mais grave é o sentimento consolidado de exílio, a vontade de evasão: 38,2% dos integrantes manifestaram a intenção de deixar a corporação. É uma desistência emocional, uma desilusão com as suas trajetórias, um abatimento moral.

Um policial militar demora um ano para se formar, e bem menos para não se sentir amado.

Lembro que um levantamento efetuado há dois anos, antes dos efeitos destrutivos da enchente, apontava que mais da metade das mortes de policiais militares era por depressão. Ou seja, grande parte dos óbitos dos nossos combatentes não acontece no front, mas pela solidão, pelo desamparo, pelo desgosto, quando param um minuto para pensar na desassistida existência que levam.

Parece que os soldados não contam com o direito de adoecer, já que devem ser fortes e aguentar tudo, de acordo com o rótulo que recebem da população. E, assim, o desprezo silencioso ao seu sofrimento é ainda mais letal.


Tanto que, diante da barra da invisibilidade social — são vistos apenas nas más notícias e esquecidos quando cumprem exemplarmente a sua função —, 24,88% dos brigadianos são obrigados a tomar remédio psiquiátrico diariamente para suportar a pressão.

Amargam uma insalubridade mental, distantes da família e sem conforto ou estabilidade para dar aos filhos e aos pares amorosos em troca de sua ausência e sacrifício.

Colocam a vida em risco para nos proteger, e não obtêm reconhecimento, sequer dispõem de blindagem salarial para lidar com as sequelas.

Nunca há passeata quando são tombados. Por que há comoção pública para algumas categorias profissionais e indiferença para outras?

Ocorre uma dupla desumanização do perfil, interna e também externa, pelo modo como a sociedade os enxerga.

Sobrevivem com vencimentos parados, em contraste com a rapidez das perdas inflacionárias. Não desfrutam de promoções automáticas e driblam as dívidas pontuais à base de juros bancários e empréstimos consignados.

Muitos tiveram a casa invadida e avariada pelas águas enquanto, paradoxalmente, ajudavam no resgate de gaúchos.
Muitos não podem nem estender a farda no varal para evitar represálias da criminalidade. Sabe o que é precisar se esconder na própria comunidade, apesar de estar do lado certo da lei?

Como ser altivo e confiante enfrentando a violência acachapante, em contato com o submundo, intoxicado com o mais ínfero da condição humana?

Como soerguer-se, calejado pelo estresse e pela Síndrome de Burnout, sem chance de falhar em nenhum momento, sob pena do banimento?

É um ciclo que nunca se fecha, representado na armadilha da permanência desprovida de perspectiva. É triste sair, mas não faz sentido ficar preso a um lugar que não cuida.

O principal equipamento do brigadiano não é o colete à prova de balas, nem o escudo, nem o armamento, nem a viatura. É o coração, que está exposto e sangra.

Não encontra respiro na realidade, muito menos qualquer pacificação no futuro. Até a esperança é improvável.

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