Mais de 44 mil usuários deixaram o plano em 2024

Flávia Simões Correio do Povo
“O IPE não atendia mais as minhas necessidades”, resumiu o delegado aposentado, Guilherme Wondracek, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul (Asdep). Usuário do IPE Saúde desde antes de entrar no Estado, em 1992, Wondracek integra a lista dos 44 mil usuários que deixaram o plano em 2024.
A sua principal queixa é a dificuldade para conseguir marcar consultas. A mesma reclamação é compartilhada por outros usuários, como Ana Lúcia Touguinha, servidora aposentada da secretaria de Turismo. Ela conta que quase todos os seus médicos deixaram de atender pelo plano nos últimos anos.
Foram esses relatos que chegaram na Assembleia Legislativa e devem embasar a audiência pública, nesta quinta-feira, na Comissão de Serviços Públicos. “A reclamação é quase que unânime na minha Região Sul, e em diversas outras regiões do Estado também: a ausência de médicos para atender, a dificuldade de agendamento com médicos que existem, algumas situações de cobranças não previstas no plano”, disse o deputado Halley Lino (PT), proponente da audiência.
Prevista para às 11h, a reunião deve reunir representantes do IPE Saúde, da Casa Civil e de sete sindicatos ligados às duas áreas com maior número de servidores: educação e segurança.
E foi justamente o sindicato dos professores gaúchos, CPERS, que realizou um protesto nesta terça-feira cobrando melhores condições para o Instituto. Os manifestantes se reuniram em frente à sede do IPE Saúde, na Borges de Medeiros, e seguiram até a Praça da Matriz, onde se concentram os poderes Executivo e Legislativo.
O que mostram os números
A dificuldade em conseguir consultas está, em parte, explícita nos números: em 2022, o IPE contava com 6.358 médicos credenciados. No ano seguinte, em 2023, passou para 5.501, uma queda de aproximadamente 15%. E, em 2024, o quadro profissional também reduziu, fechando em 5.305.
Os dados são do balanço anual de 2024, o primeiro desde que o Instituto passou por uma reforma na qual alterou uma série de questões no seu funcionamento, como a cobrança para dependentes, o aumento nas alíquotas de contribuição e o acréscimo nas porcentagens de coparticipação.
As informações do anuário apontam também para uma redução no número de usuários – o que já era esperado, até mesmo pela direção. A maior queda foi entre os de dependentes – um dos principais pontos alterados na reforma. Em 2023, eram 302 mil. Em 2024, o saldo fechou em 276 mil, uma redução de 8,77%. Entre os contribuintes também houve uma baixa, passando de 821 mil, em 2023, para 784 mil em 2024. Uma redução de 37 mil vínculos (4,54%).
Com isso, o saldo fechou no negativo em todos os aspectos, incluindo o número de usuários total. Em 2024, foram 857 mil pessoas utilizando o plano; em 2023, eram 902 mil. A reportagem entrou em contato com o IPE Saúde solicitando os dados de 2025, tanto de usuários quanto de colaboradores, mas os números ainda não foram consolidados e, por isso, não foram disponibilizados.
Apesar dos percentuais não revelarem uma evasão expressiva, as queixas dos servidores se mantêm as mesmas. Além da dificuldade em conseguir consultas, relatos também apontam para uma ausência de cobertura de procedimentos de média complexidade, no interior, que se estende até para algumas consultas especializadas, visto a enxuta rede credenciada.
Fatores que, somados ao aumento da alíquota e as novas cobranças, tornam o serviço ainda menos atrativo. “Não valia a pena seguir pagando por um plano que eu não utilizava”, contou o delegado aposentado. Segundo ele, entre os delegados filiados na Asdep, menos da metade segue usufruindo do plano.
Diferente de Wondracek, Ana Lúcia ainda se mantém credenciada e paga, ainda, o Plano Complementar (PAC) para suas duas filhas, de 35 e 42 anos. Mas ela se recorda de momentos cruciais em que o plano a deixou sem assistência.
Seu marido, também servidor e contribuinte do IPE, precisou fazer um exame de grande relevância durante o tratamento de câncer e teve a cobertura negada – mais de uma vez. Dada a urgência, a família acabou pagando pelo serviço na rede privada. Para ela, o Instituto funciona no quesito atendimento de emergência – principalmente na Capital – mas ainda falha no especializado.
Um ano de reformas
Em 2023, o IPE Saúde enfrentava uma realidade amarga: com um déficit no caixa, via a debandada de médicos e o aumento crescente nas reclamações dos usuários. Com esse cenário, o governo do Estado propôs uma reforma que foi aprovada pela Assembleia Legislativa em julho daquele ano.
As novas normas, que incluíam, principalmente, um aumento no que era cobrado dos contribuintes, começaram a valer em outubro. Segundo o Executivo, as alterações foram necessárias para reestabelecer o equilíbrio financeiro e a qualificação do serviço prestado. Com isso, o ano de 2024 foi de reformas e adaptações.
Katia Terraciano, presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Aposentados e Pensionistas (Sinapers), integrou o conselho administrativo do IPE até o final de 2024 e elenca três elementos que, segundo ela, teriam levado à crise.
São eles: a falta de contribuição paritária de órgãos do Executivo, quando secretarias e autarquias dos Estados pararam de contribuir com percentual que deve ser pago aos servidores pensionistas. A venda imóveis (avaliados em quantias abaixo do mercado) pelo governo do Estado e que pertenciam ao IPE Saúde, sem que o valor das vendas retornassem ao caixa do IPE; e o não repasse dos percentuais recolhidos durante o pagamento de precatórios que eram destinados ao IPE.
Além do reajuste médico elevado, que aumentou o valor cobrado tanto pelos profissionais quanto por procedimentos e medicamentos. “Não existiria déficit no IPE se ele não tivesse sido vítima de um calote (do Estado) e de uma defasagem salarial de 10 anos”, finalizou Katia.
Pouco antes da reforma, a direção, à época comandada por Paulo Oppermann, iniciou um processo de cobrança dessas dívidas. Só daquilo que era devido decorrente do pagamento de precatórios, foi quase R$ 1 bilhão que entrou no caixa do Instituto. Atualmente, esses repasses foram regularizados.
Mas o governo do Estado ainda está em déficit com o IPE. São R$ 123 milhões devidos decorrentes das contribuições paritárias e quase R$ 12 milhões a serem recebidos oriundos da venda dos imóveis – R$ 32 milhões já foram pagos. Segundo a assessoria do Instituto, as tratativas para repasse do restante do valor devido ainda estão em andamento.
Os recursos ajudaram no processo de equilibrar o caixa, mas outros movimentos ainda eram necessários. Além de cobrar os débitos, a administração também decidiu rever os valores que eram repassados aos médicos e hospitais e instituiu novas normativas para os repasses.
As entidades hospitalares, algumas para quem o IPE devia, questionaram a medida e ameaçaram suspender o atendimento pelo plano do governo do Estado, o que deixaria os quase mil usuários sem assistência hospitalar. Nesse processo, a União Gaúcha entrou com uma liminar na Justiça que obrigou os hospitais a manterem os atendimentos.
Para Katia Terraciano, presidente do Sinapers, a liminar permitiu que o Instituto partisse para as negociações com os hospitais em uma posição mais confortável. As tratativas terminaram no final de maio deste ano e o resultado foi um acordo com 15 instituições hospitalares, após 58 sessões de mediação conduzidas pelo Judiciário gaúcho, de repactuação das taxas pagas pelo IPE e o reconhecimento das normativas que alteraram os pagamento pelos serviços de saúde.
Com esse imbróglio em curso no administrativo, na ponta, os usuários do IPE aguardavam a melhora prometida pelo governo do Estado quando se justificou o aumento dos valores cobrados pelo serviço.
Assim, o IPE idealizou uma proposta para atrair mais credenciados. Intitulado “Programa Mais Assistência”, o objetivo era ampliar a rede credenciada no Estado e os primeiros editais estão previstos para novembro, segundo o governador Eduardo Leite (PSD). Para tal, o plano já equiparou os valores pagos aos médicos aqueles praticados em mercado (R$ 108 por consulta para Pessoa Jurídica e R$ 74 para Pessoas Físicas), e aumentou os valores repassados em alguns procedimentos.
E quem deverá comandar esse novo processo é Paulo Rogério Silva dos Santos, nomeado diretor-presidente do Instituto na última sexta-feira. No mesmo dia, Paulo Oppermann, que presidia o IPE desde 2023, foi exonerado.
O que diz o IPE Saúde:
Em nota, o Instituto afirma que a perda de usuários e contribuintes era prevista, devido ao aumento das alíquotas, e os números estão dentro daquilo esperado – assim como a baixa nos médicos que prestam serviço pelo plano. “Se deve a uma expectativa natural de profissionais que se aposentam, faleceram ou que optam por deixar o plano”.
Mas ressalta que o plano está se preparando para iniciar novos credenciamentos, o que deve ocorrer por meio de chamamento público.
Confira a nota na íntegra:
De acordo com o Relatório de Gestão da Instituição, no ano de 2023 o IPE Saúde tinha 902.449 usuário. Em 2024 esse número era de 857.934. Redução de menos de 5% (4.93%). Um quantitativo esperado diante do aumento da alíquota e da cobrança que se estendeu aos dependentes, durante o processo de reestruturação financeira da autarquia.
Ainda de acordo com o Relatório de Gestão, no ano de 2023 o IPE Saúde contabilizava 7.676 prestadores. No ano seguinte, eram 7.480. 196 a menos. O que se deve à uma expectativa natural de profissionais que se aposentam, falecem ou que optam por deixar o plano. Mas, primordialmente, à interrupção de novos credenciamentos, em razão das diretrizes da Lei Federal nº 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), em especial os artigos n.º79 e 80, seção . A norma estabelece que o credenciamento só pode ocorrer após um chamamento público. Com a vigência do Decreto Estadual nº 57.915/2024, que regulamenta essa lei no âmbito do IPE Saúde, e a publicação da Instrução Normativa nº 24/2024, que estabelece as regras específicas para o credenciamento, o IPE Saúde se prepara para dar início aos credenciamentos de forma estruturada e padronizada. Isso inclui prestadores atuais, extensão de credenciamentos existentes e a habilitação de novos profissionais e empresas para prestação de serviços médicos, hospitalares e laboratoriais. A publicação dos primeiros editais está prevista ainda para 2025. A expectativa é que, com a implementação das novas normas, o processo se torne mais transparente e eficiente, beneficiando tanto os prestadores quanto os segurados do IPE Saúde.
