Ainda chocado, releio a notícia da morte do Sargento Marcelo Borges Desidério, em Erval Grande, quando chega a mensagem de um amigo. E eu não sei o que responder. “Teu livro – O Silêncio mais profundo – narra exatamente uma história assim. Lembrei do teu alerta que poucos leram ou valorizaram”, ele me envia. Não respondo. Engulo em seco. Nas redes sociais, outros amigos fazem a mesma comparação. E eu me sinto mal, confesso. Muito mal.
Porque eu gostaria é que não fosse preciso escrever sobre uma realidade tão injusta. Eu gostaria de que nenhum fato real pudesse ser comparado com um romance literário, onde dois PMs enfrentam, sozinhos, em nosso interior gaúcho, um bando de assaltantes de banco dispostos a tudo, inclusive a matar.
Mas é a realidade. São os fatos, há muito tempo.
O Sargento Deisidério morreu como herói ao defender anônimos, ao correr para o perigo em nome de uma justiça que acreditava defender, em que sempre acreditou, como acreditava no amor da sua família e das pessoas de bem. Ela não precisava disto.
Ele poderia simplesmente ter dito ao soldado que não vale a pena. Não quando um salário de R$ 450,00 apenas te é creditado e tuas contas, todas, não querem nem saber e cobram juros, multas e etc. Quando a sobrevivência dos teus precisa muito mais do que isto para ser mínima. Quando a dignidade cobra um preço muito alto.
Mas não é assim que nós, policiais de vocação, funcionamos. Somos desrespeitados todos os dias. Mas oferecemos nossas vidas por estas mesmas pessoas que nos desprezam, ou esquecem, ou simplesmente não nos dão a mínima.
Damos a vida até pelos que nos odeiam.
Sim, é assim que age a grande e esmagadora maioria de policiais brasileiros. Que não têm a legislação, a cultura e a tecnologia – muito menos os ganhos – dos policiais europeus ou norte-americanos dos filmes. E, no entanto, salvam muito mais vidas todos os dias.
O luto pelo Sargento Desidério ecoa numa tristeza densa pela alma dos gaúchos que sonham com dias de paz. O luto pelo Sargento Desidério ecoa nas sirenes que se fizeram ouvir como um ciclone de lágrimas fartas de injustiças.
Eu penso na família que ele deixa. Na dor, na ausência, nos dias pesados que lhes aguardam daqui para a frente. Com quem contarão? Com quantos?
Aos 43 anos, após tanto tempo de serviço, ele deveria recolher as linhas e apenas sonhar com os já próximos, talvez, dias de descanso de uma aposentadoria. Mas não. estava lá, na madrugada, porque há muito não há mais ninguém para estar nestas horas, nestes lugares onde ninguém vê.
Ninguém vê. Exceto os bandidos.
Muitos morreram como Desidério antes. Muitos ainda morrerão, pois seguiremos correndo de encontro ao perigo sempre que ele dá as caras. Continuaremos oferecendo nossas vidas até por quem não nos ama.
Muitos bandidos ainda seguirão nos roubando e comemorando por poder agir em terras, e dias, tão propícios.
Eu só quero que, um dia, meu livro seja retrato de uma época que nunca mais existiu.